Eu fui vítima dele. Por causa dele odiei a escola. Nas minhas
caminhadas passadas eu o via diariamente. Naquela adolescente gorda de
rosto inexpressivo que caminhava olhando para o chão. E naquela outra,
magricela, sem seios, desengonçada, que ia sozinha para a escola. Havia
grupos de meninos e meninas que iam alegremente, tagarelando, se
exibindo, pelo mesmo caminho… Mas eles não convidavam nem a gorda e nem a
magricela. Dediquei-me a escrever sobre os sofrimentos a que as
crianças e adolescentes são submetidos em virtude dos absurdos das
práticas escolares. Mas nunca pensei sobre os sofrimentos que colegas
infligem a colegas seus. Talvez eu preferisse ficar na ilusão de que
todas as crianças e todos os adolescentes são vítimas. Não são. Crianças
e adolescentes podem ser cruéis.
“Bullying” é o nome dele. Fica o nome inglês porque não se encontrou
palavra em nossa língua que seja capaz de dizer o que “bullying” diz.
“Bully” é o valentão: um menino que, em virtude de sua força e de sua
alma deformada pelo sadismo tem prazer em intimidar e bater nos mais
fracos. Vez por outra as crianças e adolescentes brigam em virtude de
desentendimentos. São brigas que têm uma razão. Acidentes. Acontecem e
pronto. Não é possível fazer uma sociologia dessas brigas. Depois da
briga os briguentos podem fazer as pazes e se tornarem amigos de novo.
Isso nada têm a ver com o “bullying”. No “bullying” um indivíduo, o
valentão, ou um grupo de indivíduos, escolhe a sua vítima que vai ser o
seu “saco de pancadas”. A razão? Nenhuma. Sadismo. Eles “não vão com a
cara” da vítima. É preciso que a vítima seja fraca, que não saiba se
defender. Se ela fosse forte e soubesse se defender a brincadeira não
teria graça. A vítima é uma peteca: cada um bate e ela vai de um lado
para outro sem reagir. Do “bulling” pode-se fazer uma sociologia porque
envolve muitas pessoas e tem continuidade no tempo. A cada novo dia, ao
se preparar para a escola, a vítima sabe o que a aguarda. Até agora
tenho usado o artigo masculino – mas o “bullying” não é monopólio dos
meninos. As meninas usam outros tipos de força que não a força dos
punhos. E o terrível é que a vítima sabe que não há jeito de fugir. Ela
não conta aos pais, por vergonha e medo. Não conta aos professores
porque sabe que isso só poderá tornar a violência dos colegas mais
violenta ainda. Ela está condenada à solidão. E ao medo acrescenta-se o
ódio. A vítima sonha com vingança. Deseja que seus algozes morram. Vez
por outra ela toma providências para ver seu sonho realizado. As armas
podem torná-la forte.
Freqüentemente, entretanto, o “bullying” não se manifesta por meio de
agressão física mas por meio de agressão verbal e atitudes. Isolamento,
caçoada, apelidos.
Aprendemos dos animais. Um ratinho preso numa gaiola aprende logo.
Uma alavanca lhe dá comida. Outra alavanca produz choques. Depois de
dois choques o ratinho não mais tocará a alavanca que produz choques.
Mas tocará a alavanca da comida sempre que tiver fome. As experiências
de dor produzem afastamento. O ratinho continuará a não tocar a alavanca
que produz choque ainda que os psicólogos que fazem o experimento
tenham desligado o choque e tenham ligado a alavanca à comida.
Experiências de dor bloqueiam o desejo de explorar. O fato é que o mundo
do ratinho ficou ordenado. Ele sabe o que fazer. Imaginem agora que uns
psicólogos sádicos resolvam submeter o ratinho a uma experiência de
horror: ele levará choques em lugares e momentos imprevistos ainda que
não toque nada. O ratinho está perdido. Ele não tem formas de organizar o
seu mundo. Não há nada que ele possa fazer. Os seus desejos, eu
imagino, seriam dois. Primeiro: destruir a gaiola, se pudesse, e fugir.
Isso não sendo possível, ele optaria pelo suicídio.
Edimar era um jovem tímido de 18 anos que vivia na cidade de Taiúva,
no estado de São Paulo. Seus colegas fizeram-no motivo de chacota porque
ele era muito gordo. Puseram-lhe os apelidos de “gordo”, “mongolóide”,
“elefante-cor-de-rosa” e “vinagrão”, por tomar vinagre de maçã todos os
dias, no seu esforço para emagrecer. No dia 27 de janeiro de 2003 ele
entrou na escola armado e atirou contra seis alunos, uma professora e o
zelador, matando-se a seguir.
Luis Antônio, garoto de 11 anos. Mudando-se de Natal para Recife por
causa do seu sotaque passou a ser objeto da violência de colegas.
Batiam-lhe, empurravam-no, davam-lhe murros e chutes. Na manhã do dia
fatídico, antes do início das aulas, apanhou de alguns meninos que o
ameaçaram com a “hora da saída”. Por volta das dez e meia, saiu correndo
da escola e nunca mais foi visto. Um corpo com características
semelhantes ao dele, em estado de putrefação, foi conduzido ao IML para
perícia.
Achei que seria próprio falar sobre o “bullying” na seqüência do meu
artigo sobre o tato que se iniciou com esta afirmação: O tato é o
sentido que marca, no corpo, a divisa entre Eros e Tânatos. É através do
tato que o amor se realiza. É no lugar do tato que a tortura acontece.
“Bullying” é a forma escolar da tortura.
Fonte:http://www.rubemalves.com.br/aformaescolardatortura.htmhttp://www.rubemalves.com.br/aformaescolardatortura.htm
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